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Tem que ver o doc de Marcelo Gomes sobre polo de produção de jeans no agreste

Apesar de ter estreado nos cinemas brasileiros em julho, pouca gente de fato assistiu ao documentário Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes – no Rio, por exemplo, estreou em apenas duas salas. O filme pode ser assistido pelo Netflix e #ficaadica. Vale muito à pena, não só pelo fato da história surpreendente, mas porque ele traz uma reflexão muito importante.

O diretor retorna a Toritama, cidade do agreste pernambucano da qual guarda memórias pacatas de sua infância, mas que hoje é autoproclamada a “capital nacional do jeans”. Gomes tem uma surpresa ao ver que ela se tornou um pólo produtivo responsável por fazer mais de 200 milhões de jeans por ano.

Mas no lugar de fábricas e oficinas profissionais, a realidade que vemos é outra. Os próprios moradores abriram suas facções (como eles chamam as oficinas), fabriquetas caseiras, de fundo de quintal, muitas vezes sem ventilação (ou pouca) nem muita higiene. Também vemos crianças pequenas andando descalças por entre as máquinas de costura, curiosas por aquele aparelho barulhento de movimentos rápidos e contínuos. As jornadas são longas, com mais de 16 horas de trabalho por dia, incluindo o domingo. Como muitas mulheres relatam, quando chegam em casa, caem desmaiadas na cama de cansaço. Às 5h da manhã tudo recomeça. Poderia ser uma cena dessas que vemos em flagrante de trabalho escravo.

Foto: Reprodução

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Mas pelo olhar da população, o que vemos é um empreendedorismo pesado nascido da necessidade por sobrevivência em uma região extremamente seca. Os trabalhadores são seus próprios chefes e criam suas próprias ações de marketing, como o senhor que é “manequim vivo” de suas criações em jeans. Uma senhora comprou cinco máquinas e costura os acabamentos; outro faz efeitos a laser, outro tem uma lavanderia, e por aí vai. A lógica é: quanto mais você produz, mas você ganha. Uma jovem ganha 10 centavos por zíper costurado. “Se fizer 100 por dia, ganho R$ 10; se fizer mil, recebo R$ 100”, conta ao diretor, exemplificando o capitalismo acelerado da cidade.

Eles são orgulhosos de serem os próprios chefes – o que ainda não são, sonham em ser. Eles agradecem em vez de reclamar e preferem mil vezes trabalhar nesse esquema do que em fábricas. “Lá o salário seria sempre aquele mesmo”, observa um dos entrevistados. Mas essa situação resulta em uma situação de trabalho onde mais de 90% dos trabalhadores são informais e sem nenhuma garantia trabalhista.

Outro papel que se sobressai nessa história é o do motoqueiro, que carregam sua moto com um amontoado de tecidos que só Deus sabe como a moto não vira. O dia todo, eles levam centenas de jeans de um lado para o outro, da costureira para a lavagem ou outro tipo de acabamento.

Então por um lado, a produção do jeans permitiu que essa comunidade mudasse de vida. São trabalhadores pobres e sem educação ou treinamento formal, que hoje são autônomos e controlam o quanto irão receber. Por outro, notamos que eles vivem em uma espécie de auto-escravidão. É um dilema complexo.

Toritama e o jeans

Foto: Reprodução

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Por ser uma região muito seca, Toritama tem um solo pobre, obrigando a população a buscar oportunidades em outras áreas que não a agricultura ou a pecuária. Na década de 1970, a fabricação de calçados era forte e a cidade chegou a ser um polo calçadista de destaque na região. A atividade começou a decair em decorrência da crise nos anos 80 e a população voltou-se à produção de jeans. Hoje, a cidade responde por cerca de 15% da produção nacional de jeans. Segundo o site Agrestetex, são cerca de 60 milhões de peças confeccionadas por ano, gerando aproximadamente 25 mil empregos diretos, beneficiando a economia de municípios vizinhos como Caruaru, Surubim, Vertentes, Frei Miguelinho e Santa Maria do Cambucá. O faturamento anual chega a R$ 450 milhões.

Tudo isso foi possível graças ao programa Pró-Sertão, parceria do governo estadual com grandes empresas, como a Riachuelo, que foram incentivadas a contratar os serviços dos pequenos negócios locais.

Outra questão que chama a atenção é o fato da cidade estar localizada às margens do Rio Capibaribe, que na maior parte do ano é um leito seco. E como sabemos, o processo de produção do jeans envolve uma alta demanda de água. Isto significa que, em um único mês, são consumidos na lavagem da confecção cerca de 32 milhões de litros de água (93% da água utilizada pelas lavanderias vêm de carros-pipa). Isso em um dos municípios pernambucanos que apresentam maior escassez de água. Outro dilema.

Foto: Reprodução

No filme, vemos uma cidade com uma estrutura que parece não acompanhar o desenvolvimento do setor. A infraestrutura é precária, o cenário é seco e o lema do local é simplesmente trabalho. “Meu nome é trabalho, meu sobrenome é hora extra”, como diz um dos entrevistados (o melhor de todos).

Tem apenas um momento em que eles finalmente descansam: no Carnaval. Durante esse feriado, todos vão para a praia e Toritama vira uma cidade deserta, sem o barulho das máquinas de costura ou os ruídos das motos e carros.

Uma das interpretações da palavra Toritama diz que a palavra significa Terra da Felicidade.

Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar foi exibido na mostra Panorama da Berlinale e ganhou menção honrosa do júri oficial no festival É Tudo Verdade, onde também foi considerado melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.

O artigo Tem que ver o doc de Marcelo Gomes sobre polo de produção de jeans no agreste foi publicado pelo FFW.

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